segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Jão | Encontros oníricos e conversas de alma

     


Existem momentos na vida que a nossa lógica cotidiana e toda lucidez que a gente pensa ter simplesmente não explica. A gente pode até tentar planejar cada passo é ensaiar cada palavra, mas nunca vamos ser capazes de frear o inesperado. A verdade é que a felicidade não marca horário, ela invade e eu me recuso  negá-la.

As cartas de tarot disseram. 

Assim como o louco, iniciamos nossa jornada às cegas, entregues a imensidão de possibilidades. Ele é o arcano número zero, mas não simboliza o vazio, não representa o nada. O zero se apresenta como o espiral, o infinito e a multiplicidade de caminhos. Antes de aprendermos a andar já somos capazes de desejar as trilhas, porque já conhecemos o imaginário. E no processo de aprendizado lidamos com as quedas, mas mesmo assim sempre somos movidos por uma força que nos leva a seguir. O louco dança na beira do abismo porque não teme a profundidade, o mistério o move. O incerto lhe encanta, porque é na incerteza que nos permitimos aprender.


Gosto de ser imaturo com você
Gosto de me entregar e me perder
Quero poder implicar com todas suas maneiras

Eu me viciei em Jão muito antes de Imaturo fazer sentido, mas agora que se tornou uma verdade, ela se materializou como mantra. Às vezes a gente precisa passar por alguns processos que nos deixam em carne viva e extremamente vulneráveis para que seja possível nos entregarmos ao que realmente seja significativo despidas de toda vaidade e superficialidade. 

Às vezes tudo que a gente precisa é sentir a alegria irresponsável da adolescência quebrando a cadência concreta da nossa vida adulta. Minha alma está nua e não sinto vontade e muito menos a necessidade de vesti-la. 

É que eu sou fraco, frágil
Estúpido pra falar de amor
Mas se for com você, eu vou, eu vou

Os dias nesse país estão sendo de enlouquecer, mas se temos a dádiva de encontrar sentimentos intensos e profundos em meio ao caos precisamos ser gratos e não perder a oportunidade de eternizar cada um desses momentos de entrega. Alguns encontros são de alma, e mesmo que a gente ouse adiá-los por anos um dia eles acontecem. 

Não há nada que a nossa limitação da materialidade humana possa fazer para conter o destino, porque quando duas almas se reconhecem elas simplesmente são. Elas se reúnem porque é assim que tem que ser e nada poderia mudar o curso natural desse acontecimento. É como estar de volta para casa depois de uma longa viagem, como se achar pertencente a um abraço e um olhar. É ouvir uma voz e pensar que sentiu tanta falta de ouvi-la mesmo que a lógica humana lhe diga que aquele tom invadia seus sentidos pela primeira vez. E não há nada mais lindo do que se reconhecer em alguém, se refazer no outro, porque o outro também é você. 

sábado, 15 de junho de 2019

Anavitória| Crônicas de dias clichês ou ensaio para um alguém que machuquei


Eu nunca me arrependo do que eu expresso nos textos, acho sempre que cada linha foi como um retrato do que sentia naquele momento. Cada texto é um recorte de tempo e escrever é um exercício de entrega, se não é para deixar algo de si no papel é melhor nem gastar a caneta. Um texto pode transbordar a dor ou expor a felicidade, mas nunca é possível escrever um texto com indiferença. Por mais anônimo que seja a autora ou autor, a “assinatura” vai estar sempre lá espalhada em cada linha. Escrever é se mostrar da forma mais desnuda e sincera, porque para um bom leitor até as palavras contrária ao que realmente se sente ficam expostas. Então não há tempo para se negar o que se escreve, sejamos bondosos com nós mesmos dentro das nossas limitações e desejos. Não há borracha que apague o que já foi lido.

Já me permiti ser lida talvez em todos os meus momentos de fragilidade, e mesmo se eu não abrisse a boca quem me conhece saberia que eu tinha algo a dizer. A minha melhor forma de me mostrar sempre foi a escrita, é meu meio de comunicação mais honesto, mas talvez não o mais eficaz. O problema é que escrever em momentos de “tempestade” pode muitas vezes nos fazer perder a dosagem. Eu posso não me arrepender do que escrevi, mas voltaria no tempo para me deixar ser lida.

Fins e recomeços são tão naturais na minha vida que eu deveria ter separado um lugar no armário para eles, mas prefiro dividir o vinho, as noites de insônia, as crises de ansiedade e os textos ruins que brotam no meio de tudo isso. E cada momento desses sempre vai ter uma trilha sonora, porque minha memória afetiva é musical. Eu assumo até que estava com saudades de escrever aqui, até porque esse blog acumula uma década de recortes da minha vida e registrar algo aqui sempre foi como assinar os momentos em duas vias. Só de fato ocorre quando conseguimos expressar, se passamos batidos por um acontecimento ele simplesmente só foi pra compor cenário.

Eu demoro a escrever porque tenho o péssimo hábito de ficar procurando parágrafos elaborados para escrever o óbvio. Talvez a vida se complique nesse meio tempo em que a gente perde oportunidades por querer enfeitar demais as coisas. Será que a distância entre a gente e um momento feliz é a simplicidade de aceitar as coisas como elas são, puras e simples? Provavelmente a gente só precise da casualidade de um dia comum.

Dias clichês não fazem mal a ninguém. Ficar buscando profundidade em todos os momentos só torna tudo um peso, um fardo desnecessário quando se pode dar de cara com o sorriso em meio a coisas simples. Eu passei mais de dois anos procurando sentido em uma imensidão que eu desconhecia, mergulhando no vazio e nadando em um turbilhão de coisas que eu não tinha a menor condição de lidar. Eu bati palma para maluco dançar e quase entrei na dança também.

Em meio a tudo isso eu demorei a perceber que os meus melhores sorrisos vinham de um lugar que eu já conhecia, do que já estava bem na minha frente. Quando a gente fica fantasiando e floreando a vida, se esquece de prestar atenção no óbvio.

Eu nunca sigo “auê” por cantores e bandas, eu escuto o que de alguma forma me chama atenção, o que me diz algo. Não tenho a menor paciência para seguir multidão quando o assunto é música. Para mim, é algo tão íntimo que mesmo quando indicamos uma música a alguém é querendo mostrar algo de nós para o outro, nem que seja aquela empolgação que sentimos ao ouvir uma determinada letra ou batida pela primeira vez. Letras e ritmos podem criar sentido ou se ressignificar de acordo com nossas experiências. E foi me deixando viver o mais simples que eu tive meu encontro com o trabalho do duo Anavitória.

Ana Caetano e Vitória Falcão fazem um som muito honesto e são a prova de que entre o honesto e o medíocre existe uma imensidão de distância. As pessoas inclusive andam perdendo a mão nisso, procurando problema onde não tem e de repente todos parecem ter virado filhotes de crítico musical. Não gostar das melodias é uma coisa que cada um sabe o que lhe apetece, mas será que também não estamos diante de uma histeria coletiva às avessas? A geração que é poser até para odiar.

A maneira com a qual as novas vozes da MPB estão se popularizando tem difundido um discurso fast food que torna viral acelerando likes ou conquistando haters quase na mesma proporção. Se ama ou se odeia, mesmo que nunca tenha se ouvido algo para além da música trilha sonora da novela.

O duo tocantinense traz um pop rural cheio das referências que cresceram imersas. As letras escritas pela Ana Caetano são de uma beleza sútil e parecem se oferecer para a voz de Vitória Falcão. Elas funcionam organicamente, parecem compartilhar a verdade das letras.

 O meu ar te embaça de perto
Senti o que é amor então
Eu nunca vi ninguém
Fazer tanto barulho num só coração
Teu cuidado é desastre
É zona sem hora, sem onde
E agora


Outrória faz parte do segundo álbum do duo intitulado O Tempo é agora, lançado em 2018. A faixa é uma composição da Ana em parceria com o Mike Túlio, do duo OutroEu, que também participou da gravação. A pegada da música é de quem se percebe apaixonado da forma mais inesperada, mas mesmo assim mais gratificante possível. Atire a primeira pedra quem nunca sentiu aquela felicidade “besta” de sorrir para si mesmo ao perceber que naquele momento havia encontrado alguém que fizesse todos os clichês de uma comédia romântica fazerem sentido.

Na rota que eu trilhei nos últimos anos, a melhor lição que eu trouxe na bagagem foi a de não tolher sentimento, porque isso é mesquinharia comigo mesma e com a outra pessoa. Mas isso carrega em si uma responsabilidade de saber lidar com os ecos do que se fala. E eu errei feio, errei rude, porque existe uma distância muito grande entre sentir e invadir o espaço do outro. Eu escrevo agora pelo que sinto, mas ainda mais para me desculpar, porque vez ou outra damos uma sorte e a vida nos presenteia com pessoas que tornam nossos dias mais leves. Nem nos questionamos como elas entram em nossas vidas, mas sabemos a diferença que é quando elas se recolhem e silenciam.

O Tempo é o mais lindo dos deuses e ele nos embala com som de calmaria. Na correria, na pressa com cheiro e gosto de ego, a gente acaba perdendo um dos movimentos mais belos que existem, que é ver e sentir alguém chegar. O turbilhão que nos perdemos e nos engole com tanta intensidade destreina nossos sentidos, tão ansiosos que deixam detalhes como esses passarem despercebidos.

Eu nunca vi ninguém
Fazer tanto barulho no meu coração
Teu cuidado é sem grade
É zona, senhora
O entrave que eu passo que eu beijo
E o quanto me leva pro chão
É por isso que eu canto outrória


Como diria minha mãe, “Alice, você é um touro. Na ânsia de ver o peixinho dourado, Touros patinam no piso da sala de estar e quebram o pé da cristaleira, jogando tudo no chão. Inclusive o peixinho dourado que ele tanto queria ver estava em cima da cristaleira”. E eu me sinto decepcionada por isso. Não é sobre ter, porque não se encastela pessoas, mas sobre a indelicadeza que não apenas machuca o outro, mas me fere por saber que não agi da maneira correta. O ônus da intensidade é sentir a água escorrer pelos dedos e não ser capaz de bebê-lá.

terça-feira, 25 de setembro de 2018

Lady Gaga | O dia mais radiante é na primavera



Duas coisas já se tornaram certas sobre esse blog: ele é meu termômetro emocional e todo dia 25 de setembro tem texto.

25 de setembro é meu dia favorito no ano. Sempre faço questão de lembrar isso, não para os outros apenas, mas principalmente para mim, pois diz muito sobre quem eu sou, quero ser e em quem me espelho. 25 de setembro é meu aniversário de alma, já que o do corpo cai em outra data. A balança me persegue, está sempre comigo em todos os cantos que eu vá, me encurralando em todos os caminhos dessa vida. Nos dias e trilhos mais afáveis, está comigo para dividir os risos. Já nos duros e mais nublado dos dias, vem sempre me lembrar que parte de mim está dividida, pesada e medida em outros corpos que andam comigo quando eu pareço não ter mais pés para isso. 25 de setembro é o dia mais lindo do ano.

Eu sou muito maluca dos signos (e eu não ligo se você, leitor/leitora, não seja) e para uma taurina que tem um mapa tomado por signos de fogo e terra é muito desafiador conviver com pessoas regidas por signos de ar. Parece um papo vazio para quem não se importa com astrologia, mas sendo mais objetiva, tente colocar alguém que a única certeza que existe é a que ele/ela tem razão, para conviver com outra que a única certeza que existe para si é a da mudança. E com certeza pela graça do Universo, no sentido do chiste e da benção, eu como a boa pessoa cheia das observações aleatórias percebi que a grande maioria das pessoas que me cercam são regidas por um signo de ar, mas particularmente por Libra.

A constelação de Libra está visível, se mostra no equinócio quando dias e noites tem suas durações equilibradas. Na mitologia grega Zeus e a titânide Themis tem uma relação arquetípica solar e o lunar, sendo assim são representação do equilíbrio e deram origem a Astreia. Assim como a mãe, Astreia estava ligada à justiça, e o mito retrata que ela se recusou a viver diante das injustiças e abandonou a Terra dando origem à constelação de Virgem, e a balança da justiça que carrega consigo seria a constelação de Libra. Junto com Atena, Afrodite e Apolo personifica o equilíbrio da justiça, inteligência o amor e o belo/harmonioso. E é justamente nesse amor que os astros cruzam Libra e Touro, signos que são regidos por Vênus.

Duas das pessoas mais especiais da minha vida fazem aniversário no dia 25 de setembro, e da mesma forma que a representação mitológica, elas se apresentam para mim como a sensatez que muitas vezes me falta. Por isso passei a comemorar o dia 25 de setembro, que para mim é o dia mais radiante do ano, como se houvesse um verão particular em plena a primavera. O sol esteve especialmente lindo hoje.

Dias radiantes precisam de sons e para mim, esse pode ser traduzido em dois, como são os lados da balança.

I was twenty-three
She was thirty-five
I was spiralling out
And she was so alive
A Texas girl real strong
Taught me this strong song
So when I start to bawl
She says, "let your teardrops fall"


Em 2016, quando lançou o álbum Joanne, Lady Gaga incluiu na versão deluxe a canção Grigio Girls, uma homenagem a sua amiga Sonja Durham, que na época lutava contra um câncer em estágio terminal. Segundo Gaga, a música é sobre como o grupo de amigas que elas tinham em comum continuou se encontrando durante o período de tratamento de Sonja para apoiar umas às outras e se encorajarem diante da situação. Grigio Girls é sobre um grupo de amigas que vão continuar se encontrando para tomar vinho comum – sim, Pinot Grigio é um vinho bem popular nos EUA -  e não deixarem sem o apoio umas das outras. É uma música sobre resiliência, mas que antes de tudo é sobre não temer compartilhar as vulnerabilidades que temos com aquelas pessoas que de fato compartilham sentimentos conosco. Muitas vezes tudo que a gente precisa é compartilhar um silêncio com alguém.

Hey girl, can you hear me?
Are you holding out your heart?
Hey girl, do you feel me?
Sometimes I go too far
Hey girl, it ain't easy
I know it's pulling me apart
But darlin', don't you leave me
Baby, don't you leave me

        
               No mesmo álbum, Gaga dividiu o vocal com Florence Welch na faixa Hey Girl, que é um hino a sororidade, mesmo que essa palavra tenha se tornado cada dia mais escorregadia em seu uso. As mulheres estão constantemente sendo colocadas em posição de rivalidade, mas Welch e Gaga cantam para contrariar tudo isso. Quando as mulheres se apoiam, se motivam e agem empaticamente, mesmo diante das diferenças, todo o sistema se move com elas. 


            Eu me sinto grata por dividir o peso da minha caminhada que por vezes parece caustica demais, com mulheres que me inspiram e me fortalecem. Cada primavera floresce trazendo à lembrança que não ando só.


terça-feira, 4 de setembro de 2018

Caetano Veloso | Penso em ficar quieto um pouquinho



Depois de “parir” uma dissertação que se apresentou para mim desde o início como um rito de passagem, alguns elementos passaram a ser componentes da minha própria descoberta, do que sou como cientista e ser humano. A solidão do processo de escrita nos coloca para pensar muito além do texto, mas no derredor, em si e no outro. É um tempo silencioso, onde é possível quebrar e remendar nossos conceitos. A gente senta para escrever as linhas do papel e termina por se reescrever.

Entre essa valsa que é um procedimento de construção e desconstrução, passei a dançar no ritmo de Caetano. Decidi passar a escutar um álbum diferente da sua discografia todos os dias na jornada de escrita durante as últimas semanas. Ouvi músicas que não conhecia, relembrei canções que há muito não ouvia e ressignifiquei meu ritual em frente ao computador. O silêncio tornou-se diálogo.

Penso em ficar quieto um pouquinho
Lá no meio do som
Peço salamaleikum, carinho, bênção, axé, shalom
Passo devagarinho o caminho
Que vai de tom a tom
Posso ficar pensando no que é bom

                Nu com a minha música foi um desses diálogos das madrugadas. Presente no disco Outras Palavras (1981), a canção foi escrita durante uma turnê onde Caetano percorreu o interior do estado São Paulo e é claramente a reflexão de alguém que se deparava com uma serenidade ideológica e a certeza que não tinha mais que provar nada para ninguém. Nas linhas esboçadas no quarto de hotel em Presidente Prudente, Caetano indicava que não precisava seguir as bandeiras de ninguém e também não precisava ser seguido, se afirmava muito certo que as verdades são individuais e que cada um que carregue sua bagagem.

                Em 2016 experimentei o sabor agridoce da vida. Eu que já conhecia o amargo e o ácido, e que estava começando a me acostumar com o doce da vida, me deparei com um novo vazio e que trouxe consigo nuances que eram até então desconhecidas. Em meio a tudo isso, terminei uma fase da minha vida acadêmica e já me vi lidando com outra. Nem posso dizer que foi um atropelo, porque hoje não saberia nem dizer como todo processo ocorreu, logo nem sou capaz de nomear o que aconteceu. Eu só fui seguindo um fluxo, uma força muito maior do que eu mesma e que foi me guiando diante do completo blackout mental que eu me encontrava.

Deixo fluir tranquilo
Naquilo tudo que não tem fim
Eu que existindo tudo comigo, depende só de mim
Vaca, manacá, nuvem, saudade
Cana, café, capim
Coragem grande é poder dizer sim


           Os dois anos foram passando e com eles parágrafos que se moveram com a força de muitos. Não falo isso dá broca para fora e por sensacionalismo, mas de fato o trabalho que me propus fazer só se tornou papel por todos que direta ou indiretamente me motivaram e guiaram-me durante o solitário processo de escrita. A minha “coragem grade”, como diz o compositor de Santo Amaro da Purificação, foi dizer sim. Foi dizer sim para minhas impossibilidades, aceitar o que não estava alcançável e me acolher diante de tudo isso e aceitar que estaria tudo bem em não ser “perfeita”. O mundo acadêmico espera ações de super-heróis quando na verdade só nos dá espaço, apoio e liberdade para sermos figurantes em meio a citações e curriculum Lattes. A Academia não foi feita para os sonhos, idealismos e devaneios, mas sim para aprumar todos em uma forma digna de regras da ABNT. O mundo acadêmico tem tolhido mais do que libertado, mas mesmo assim tende a cobrar de nós o novo, o inédito e o inquestionável.

         E por não pensar que devo fazer média para “as pessoas da sala de jantar” é que quero ficar “nu com a minha música”, pelo menos por um curto espaço de tempo. O que se espera no mundo acadêmico não é respeito, mas subserviência o que definitivamente não nasci para ser. Carrego comigo esse “defeito” de fábrica que me impede ser superficial em meio à pessoas rasas.

            Não há de ser por muito tempo, até porque meu amor pela História e a certeza que precisamos ser a subversão entre os que pregam uma pseudo intelectualidade que mais aparta do que constrói novas vias de conhecimento. É uma pausa para mim, é um silêncio externo para acalmar uma barulheira sem tamanho que se formou nos últimos anos dentro de mim.

           Trabalhar com ciência e construção de conhecimento em nosso país é tarefa árdua. Em momentos onde se prega a velha austeridade neoliberal que mais parece disco arranhado se repetindo nos tempos de crise, os meios de fomento à pesquisa são os primeiros atingidos, como se fossem os supérfluos da lista de compra da nossa mãe na hora de passar a “feira” no caixa do supermercado, essa tarefa se parece ainda mais hercúlea. 

          No Brasil, ciência é artigo de luxo e até por isso deve ser controlada por uma meia dúzia de pessoas que a tratam como negócio. Em meio a esses negócios só há espaço para as Ciências Humanas e Sociais quando convém, quando contrário, os cientistas de humanas e sociais são rotulados “vagabundos” e filiados a “doutrinação comunista” (quem me dera...). O incêndio do Museu Nacional desnudou não apenas todo tipo de discurso (dos relevantes e dos incompromissíveis) , mas também trouxe à tona a sensação de que estamos nadando contra uma correnteza e que ela exige de nós uma saúde mental que no momento eu não disponho. Sendo assim, até breve, Academia. 

        


sexta-feira, 16 de março de 2018

Marielle Franco l Lágrimas, luta e música I




Faz tempo que não escrevo aqui. Não escrevia porque não via motivo para escrever. Parece tolice, mas por mais que eu ensaiasse um rascunho, ouvisse algo novo, redescobrisse alguma coisa que há tempos não cantarolava, não via o porquê de escrever. Soava hipócrita.

Escrever é uma verdade. Escrever é transcrever a alma. É mais do que falar, porque podemos ensaiar diversas vezes uma mentira a ser pronunciada, mas escrever uma mentira corta como uma faca, pois te coloca de frente as palavras. As palavras escritas são tatuagem no papel, na tela e tinta ou imagem do que pensamos ou nos disfarçamos. O que escrevemos martela na nossa cabeça. Se é algo justo, digno, você se orgulha. Se é injustiça, mentira e falácia, você vai irremediavelmente levar consigo como martelada dissonante na mente. A palavra escrita é um legado.

Diante de todas as pancadas que temos recebido na cara desde o Golpe de 2016, há momentos que irracionalmente mergulhamos em uma letargia porque tudo parece cruel e doloroso demais para ser visto. As redes sociais são ambientes de reverberação do que vale a pena compartilhar e também do que machuca. É desumanidade em proporção industrial. É fascismo se travestindo de religião, moralismo e nacionalismo, ou seja, uma velha receita que os livros de História já nos alertaram, mas que imbecilmente – ou conscientemente – de tempos em tempos volta com força pisando na gente que está ao lado de quem luta contra opressão. Para além dos fascistas, também estamos lidando com o os representantes do “mercado”. Esses representantes estão instituídos de poder no Legislativo, Executivo e Judiciário, estão lá para garantir que nada desviará o natural curso do classicismo que está no cerne do Brasil. Esses representantes têm padrão, rostos que desde sempre ocuparam esses lugares de poder. Homens brancos, ricos, heteronormativos, que para além de apáticos ao que se passa a margem do sistema, são mandantes, cooexecutores de todas as chagas sociais desse país. No Brasil, os 3 poderes, ditos republicanos, têm árvore genealógica.  

Quarta-feira a chave girou. Girou dolorosamente. Em meio a inercia que me encontrava – e me envergonho disso – assisti do sofá a PM de São Paulo, o esquadrão da Morte do PSDB, não se fazer de rogada e quebrar, literalmente, a cara de servidores públicos com transmissão ao vivo. Servidores públicos (assim como os integrantes da própria PM) lutando para não ter direitos usurpados em meio a desgovernos que há tempos se engendram e fazem morada na Prefeitura de São Paulo e no Palácio dos Bandeirantes, foram brutalmente reprimidos. Um cala boca com cassetetes. Foi o primeiro murro do dia, como um jab para abrir a guarda ou um soco no fígado para enfraquecer, mas não era o golpe final.

O soco cruzado, de direita, veio no final da noite. Executaram a vereadora pelo PSOL e ativista Marielle Franco. Mulher negra, lésbica, da Favela da Maré, mãe, acadêmica e alguém que não estava na inercia. Marielle ousou mudar a ordem “natural” do sistema. Pautou sua vida política na tríade do direito a cidade, na igualdade de gênero e no tão necessário debate de raça, tudo isso exaltando principalmente a necessidade de discussão desses pontos para e com os moradores das favelas. Marielle era formada em Ciências Sociais, era mestra em Administração Pública e há mais de 10 anos vinha atuando na militância pela efetivação dos Direitos Humanos no Rio de Janeiro. Ela denunciava o Estado Penal, como ela mesma chamou em sua dissertação. Esse estado que vende a ideia de insegurança social para aplicar uma política de militarização para oprimir e controlar os mais pobres.

Marielle ocupava um importante lugar de fala e sua EXECUÇÃO foi claramente uma tentativa de silenciar Marielle e todos que lutam pelas mesmas pautas que ela. Além disso, fica um gostinho amargo de que os tiros que desfiguraram Marielle, e que também assassinaram Anderson, foram atirados na quarta-feira para acertar as eleições de outubro. Primeiro que, Marielle e sua luta traçavam caminho para o prédio anexo do Palácio da Guanabara, o que por si só iria cada vez mais engrossar o coro de suas denúncias contra a ação truculenta dos mecanismos de controle do Estado.

Além disso, vem se desenhando um panorama medonho para que se estenda a permanência da atual configuração do Planalto por mais 2 anos, em um verdadeiro regime de exceção.  Isso faz sentido, quando pensamos que o famigerado “mercado” não emplacou nem um candidato – tentou brotar alguns nomes que foram rechaçados com veemência, Luciano Hulk foi um desses – e claramente vai inviabilizar, através de mecanismos jurídicos e midiáticos, a candidatura sólida de Lula, além de não querer pagar para ver um fascista rasgado como Bolsonaro assumir o Planalto. Diante de tudo isso, tudo aponta para que o “Grande Acordo, com STF, com tudo” continuar do jeito que está.

Não conheci Marielle, não sabia sobre sua história e talvez isso faça tudo ainda mais difícil de digerir. Ela defendia ideias com quais eu partilho e tento aprender mais sobre todos os dias. Não sou uma mulher negra, e mesmo que eu tenha crescido em uma comunidade pobre, tive privilégios que com toda certeza não foram dados a muitos dos jovens que cresceram comigo, além de que, a realidade de uma lésbica negra é ainda mais difícil, pois é estar exposta a misoginia, lesbofobia e racismo a máxima potência (inclusive dentro da própria comunidade LGBTQ). Sendo assim, ouvir o que Marielle disse durante seus trabalhos de militância me enriquece e cresce em mim a vontade de ver se fortalecer e surgir outros nomes que deem continuidade a essa luta que precisa ser constante. Nomes como o de Maria Clara de Sena, mulher trans negra que está exilada no Canadá após sofrer ameaças em meio a sua luta por efetivação dos Direitos Humanos dentro do sistema penitenciário em Pernambuco e tantas outras mulheres que precisam ser ouvidas. E de tantas outras mulheres que precisam seguir o caminho de Marielle e ocuparem lugares de poder.

E com gosto de sague na boca e alguns sons na cabeça eu decidi escrever sobre tudo que já foi colocado acima, mas também sobre e para Marielle, com obras que sinceramente vão me lembrar dela para sempre. (Click para o segundo texto


Marielle Franco l Lágrimas, luta e música II




Vai teu caminho, que eu vou te seguindo no pensamento e aqui me deixo rente quando voltares, pela lua cheia para os braços sem fim do teu amigo. Vai tua vida, pássaro contente


Em 25 de setembro de 1956 estreava no Teatro Municipal do Rio de Janeiro a peça musical Orfeu da Conceição. Escrita por Vinicius de Moraes (músicas de Tom Jobim, cenário de Oscar Niemayer), foi apenas a segunda vez que uma peça protagonizada por atores negros subia ao palco do Municipal, que era um espaço claramente de uma elite. No palco, Ruth de Souza e Haroldo Costa (e outros atores do Teatro Experimental do Negro de Abdias Nascimento) encenavam em três atos uma adaptação – ambientada nas favelas cariocas – do mito grego de Orfeu e Eurídice. Monólogo de Orfeu, Lamento do Morro e Se todos fossem iguais a você fizeram parte da trilha sonora que três anos depois seria lançada em vinil. Orfeu da Conceição, dentro da realidade da época e todo seu contexto, dá protagonismo ao morro. É de uma beleza e simbolismo atemporal e nunca foi tão necessário revisitar essa obra. Em seu último ato ecoa:

Juntaram-se a Mulher, a Morte a Lua
Para matar Orfeu, com tanta sorte
Que mataram Orfeu, a alma da rua
Orfeu, o generoso, Orfeu, o forte.
Porém as três não sabem de uma coisa:
Para matar Orfeu não basta a Morte.
Tudo morre que nasce e que viveu
Só não morre no mundo a voz de Orfeu.

Marielle Franco lutou para desestigmatizar as populações das favelas, que poucas vezes são retratadas protagonizando algo que não seja ligado ao crime organizado. Lutou por uma política inclusiva, por uma cidade do Rio de Janeiro que oferecesse condições para que as populações dessas comunidades estivessem inclusas em um plano que estendesse a eles o direito a cidade. Era um dos pilares de seu mandato no legislativo municipal. A de insegurança social é plantada e cultivada pelo Estado para que esse faça seu controle social, oprimindo as populações mais vulneráveis. Marielle denunciava um sistema que trata a população negra, favelada, desassistida e tratada como gado, cercado, cerceado, que pasta sob vigilância e é abatido quando convém. 


Ela me conta que era militante e trabalhou por nós
Com algumas mulheres, foi feliz
Com outras foi mulher
Que tem muita luta no coração
Que tem dado muito amor
Espalhando a consciência
E o amor
Mas ela ao mesmo tempo diz que tudo vai mudar
Porque ela vai ser o que quis, inventando um lugar
Onde a gente e a natureza feliz vivam sempre em comunhão
E a tigresa possa mais do que o leão
           
            Estava sussurrando Tigresa há dias. E ontem Ana Cañas teve licença poética para colocar na letra um pouco de Marielle. Durante muito tempo se discutiu sobre para quem Caetano Veloso havia escrito Tigresa. Uns diziam que era para Sônia Braga, outros que era para Zezé Motta. Certa vez, Caetano falou que a letra tinha muito de ambas, mas não era apenas sobre elas, mas sobre muitas mulheres que ele conviveu ou viu naquela época. Essa mulher linda e forte parece ter ganho mais um rosto.  

Pouco tem se falado sobre o fato de que Marielle Franco era lésbica, algo que Ana Cañas fez questão de dizer poeticamente na sua interpretação da letra de Tigresa. Ser o L da sigla tem em si um peso gigantesco dentro de uma sociedade que ao mesmo tempo que é homofóbica é também misógina. A misoginia se encontra inclusive dentro da própria comunidade LGBTQ, que é um espectro da sociedade machista ao qual estão as margens. O racismo e a misoginia estão tão dentro da comunidade LGBTQ quanto da casa do nosso parente mais conservador. E embora saibamos muito bem que a EXECUÇÃO de Marielle não tenha sido exclusivamente por questões identitárias, mas uma associação de tudo isso com a representatividade de seu corpo político que para os mandantes era necessário silenciar, ainda ecoa também a necessidade de se fortalecer os debates em torno de questões de gênero, sexualidade e raça. 

O Estado não sabia de uma coisa:
Para matar Marielle não bastava a morte. Tudo morre, que nasce e que viveu. Só não vão matar, tirar do mundo a voz de Marielle.


Marielle,
PRESENTE. 

segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Ben E. King| Uma amizade, um som e algumas palavras


Passei parte do dia adiando esse texto, mas sabia que ele era inevitável. Tenho tido pouco tempo para divagar por aqui, o blog é cheio dessas interrupções, pequenas e longas pausas e sempre que volto a escrever algo que é postado sinto que fica evidente em cada texto as transformações da minha vida. Minha vida transborda entre todas as linhas que já escrevi. Acho até engraçado quando algumas pessoas dizem que eu sou um enigma, que nunca falo sobre mim ou que não me conhecem mesmo depois de tantos anos de convívio. Eu não falo, e isso é um fato, mas eu me deixo ler. Como já diriam alguns teóricos da linguística e da História, também dizemos muito em meio ao não dito.
            Não fui a criança mais popular da escola, também não fui a adolescente mais descolada, mas não posso dizer que não tive muitas pessoas ao meu redor. Aos poucos a gente aprende que a vida é um vai e vem de pessoas, que muitas vezes entram em nossas vidas, nos marcam e passam. Se tornam memórias boas ou ruins, mas se tornam parte da nossa história e de todo um processo que é a nossa passagem por essa vida. Não há como fazê-las ficarem muitas vezes, elas simplesmente ficam o tempo que for necessário para o nosso aprendizado. Pessoas não são coisas, não nos pertencem. Elas simplesmente fluem, seguem um ritmo e o caminho que a vida as destinam. Ninguém entra, passa e marca nossa vida à toa. Pessoas nos ensinam, seja a cair ou a levantar, mas elas nos ensinam
            Sou avessa a telefonemas, as crises de depressão muitas vezes não me fazem ter a menor vontade de sair e claro que tudo isso faz com que muitas pessoas me entendam como uma descompromissada com os vínculos de amizade. Tudo bem, as entendo, de fato deve ser muito difícil de lidar, não parece que sirvo para amizade, mas pareço um criptograma ambulante. Essas pessoas simplesmente passam, como já havia de certa forma explicado acima.
            Sendo quem eu sou, rabugenta, supersticiosa, idealista e um par mais de coisas que ninguém normalmente tá muito afim, eu não tenho mais que uma mão de amigos. Sim, uma mão, pois conto nos dedos de uma mão e nem sei se posso dizer que é uma mão cheia.
            Há alguns anos eu ficava imaginando que as poucas pessoas que eu de fato poderia chamar de amigas de fato ficariam na minha vida. Em um determinado momento eu até cheguei ao ponto de querer me acostumar com a falta dessas pessoas, porque não sabia se poderia contar com elas, porque para algumas pessoas a amizade termina na virgula.
            Esses dias eu estava assistindo um desses filmes imortais que na infância passaram mil vezes na famigerada Sessão da Tarde. Conta Comigo foi um desses clássicos do final dos anos 80 que moldaram uma geração de adolescentes e crianças. Mas o que sempre me fez lembrar do filme não era a história em si, mas a música homônima que estava na soundtrack.

If the sky that we look upon
Should tumble and fall
Or the mountain
Should crumble to the sea
I won't cry, I won't cry
No, I won't shed a tear
Just as long as you stand
Stand by me
           
Stand by me foi escrita em 1960 por Ben E. King, dono da voz que também a imortalizou. Gravada no disco Don't Play That Song!, em 1961, é uma canção que fluem entre o R&B e o Soul. A música já foi inúmeras vezes regravada, desde John Lennon a Prince Royce. Alguns versos na música remetem a trechos do Salmo 46 (Portanto não temeremos, ainda que a terra se mude, e ainda que os montes se transportem para o meio dos mares. Ainda que as águas rujam e se perturbem, ainda que os montes se abalem pela sua braveza).
            É uma música romântica, mas é impossível não a associar também a uma amizade com a qual se pode contar em todos os momentos. Assim como aos poucos descobrimos que algumas pessoas nos marcam e passam, também nos encontramos com aquelas ou aquela que indubitavelmente podemos contar sempre (e oxalá, para sempre). E é por essas pessoas que vivemos e não podemos deixar de acreditar na vida.
            Uma certa tarde, há algum tempo, sentei em um café com uma amiga. Eu estava vivendo um dos momentos mais complicados que a vida já me apresentou e tudo na minha mente era ainda tão desorganizado, confuso. Ela só sentou lá e esperou a tarde inteira para que eu falasse. Não falei, simplesmente porque não tinha palavras. Eu tinha medo, porque a gente as vezes se acostuma em meio as pessoas que são nossos “amigos” até o porém. Temos medo do julgamento. Naquela tarde eu descobri na prática o significado da palavra amigo. Aprendi com ela que amizade não é sobre frequência de palavras trocadas ou a quantidade de vezes que vamos nos encontrar, mas sobre a certeza e a segurança de que o respeito, o carinho e a compreensão não são negociáveis.  
Sobre a minha definição de amigo:
Amigo: pessoa que se faz entender em meio ao silêncio, que chora pela dor que não sente e carrega consigo angustias, sabores e dessabores de um outro ser. Indivíduo que ama sem porém, frase onde não se usa virgula.

            Que as pessoas se respeitem mais, que se amem mais e que valorizem os momentos, porque a eternidade vive neles. A gente nunca sabe o nosso verdadeiro significado para existência de alguém, ou como nossas palavras de conforto, nosso silencio acolhedor ou nosso abraço pode mudar o dia de alguém.