sexta-feira, 16 de março de 2018

Marielle Franco l Lágrimas, luta e música I




Faz tempo que não escrevo aqui. Não escrevia porque não via motivo para escrever. Parece tolice, mas por mais que eu ensaiasse um rascunho, ouvisse algo novo, redescobrisse alguma coisa que há tempos não cantarolava, não via o porquê de escrever. Soava hipócrita.

Escrever é uma verdade. Escrever é transcrever a alma. É mais do que falar, porque podemos ensaiar diversas vezes uma mentira a ser pronunciada, mas escrever uma mentira corta como uma faca, pois te coloca de frente as palavras. As palavras escritas são tatuagem no papel, na tela e tinta ou imagem do que pensamos ou nos disfarçamos. O que escrevemos martela na nossa cabeça. Se é algo justo, digno, você se orgulha. Se é injustiça, mentira e falácia, você vai irremediavelmente levar consigo como martelada dissonante na mente. A palavra escrita é um legado.

Diante de todas as pancadas que temos recebido na cara desde o Golpe de 2016, há momentos que irracionalmente mergulhamos em uma letargia porque tudo parece cruel e doloroso demais para ser visto. As redes sociais são ambientes de reverberação do que vale a pena compartilhar e também do que machuca. É desumanidade em proporção industrial. É fascismo se travestindo de religião, moralismo e nacionalismo, ou seja, uma velha receita que os livros de História já nos alertaram, mas que imbecilmente – ou conscientemente – de tempos em tempos volta com força pisando na gente que está ao lado de quem luta contra opressão. Para além dos fascistas, também estamos lidando com o os representantes do “mercado”. Esses representantes estão instituídos de poder no Legislativo, Executivo e Judiciário, estão lá para garantir que nada desviará o natural curso do classicismo que está no cerne do Brasil. Esses representantes têm padrão, rostos que desde sempre ocuparam esses lugares de poder. Homens brancos, ricos, heteronormativos, que para além de apáticos ao que se passa a margem do sistema, são mandantes, cooexecutores de todas as chagas sociais desse país. No Brasil, os 3 poderes, ditos republicanos, têm árvore genealógica.  

Quarta-feira a chave girou. Girou dolorosamente. Em meio a inercia que me encontrava – e me envergonho disso – assisti do sofá a PM de São Paulo, o esquadrão da Morte do PSDB, não se fazer de rogada e quebrar, literalmente, a cara de servidores públicos com transmissão ao vivo. Servidores públicos (assim como os integrantes da própria PM) lutando para não ter direitos usurpados em meio a desgovernos que há tempos se engendram e fazem morada na Prefeitura de São Paulo e no Palácio dos Bandeirantes, foram brutalmente reprimidos. Um cala boca com cassetetes. Foi o primeiro murro do dia, como um jab para abrir a guarda ou um soco no fígado para enfraquecer, mas não era o golpe final.

O soco cruzado, de direita, veio no final da noite. Executaram a vereadora pelo PSOL e ativista Marielle Franco. Mulher negra, lésbica, da Favela da Maré, mãe, acadêmica e alguém que não estava na inercia. Marielle ousou mudar a ordem “natural” do sistema. Pautou sua vida política na tríade do direito a cidade, na igualdade de gênero e no tão necessário debate de raça, tudo isso exaltando principalmente a necessidade de discussão desses pontos para e com os moradores das favelas. Marielle era formada em Ciências Sociais, era mestra em Administração Pública e há mais de 10 anos vinha atuando na militância pela efetivação dos Direitos Humanos no Rio de Janeiro. Ela denunciava o Estado Penal, como ela mesma chamou em sua dissertação. Esse estado que vende a ideia de insegurança social para aplicar uma política de militarização para oprimir e controlar os mais pobres.

Marielle ocupava um importante lugar de fala e sua EXECUÇÃO foi claramente uma tentativa de silenciar Marielle e todos que lutam pelas mesmas pautas que ela. Além disso, fica um gostinho amargo de que os tiros que desfiguraram Marielle, e que também assassinaram Anderson, foram atirados na quarta-feira para acertar as eleições de outubro. Primeiro que, Marielle e sua luta traçavam caminho para o prédio anexo do Palácio da Guanabara, o que por si só iria cada vez mais engrossar o coro de suas denúncias contra a ação truculenta dos mecanismos de controle do Estado.

Além disso, vem se desenhando um panorama medonho para que se estenda a permanência da atual configuração do Planalto por mais 2 anos, em um verdadeiro regime de exceção.  Isso faz sentido, quando pensamos que o famigerado “mercado” não emplacou nem um candidato – tentou brotar alguns nomes que foram rechaçados com veemência, Luciano Hulk foi um desses – e claramente vai inviabilizar, através de mecanismos jurídicos e midiáticos, a candidatura sólida de Lula, além de não querer pagar para ver um fascista rasgado como Bolsonaro assumir o Planalto. Diante de tudo isso, tudo aponta para que o “Grande Acordo, com STF, com tudo” continuar do jeito que está.

Não conheci Marielle, não sabia sobre sua história e talvez isso faça tudo ainda mais difícil de digerir. Ela defendia ideias com quais eu partilho e tento aprender mais sobre todos os dias. Não sou uma mulher negra, e mesmo que eu tenha crescido em uma comunidade pobre, tive privilégios que com toda certeza não foram dados a muitos dos jovens que cresceram comigo, além de que, a realidade de uma lésbica negra é ainda mais difícil, pois é estar exposta a misoginia, lesbofobia e racismo a máxima potência (inclusive dentro da própria comunidade LGBTQ). Sendo assim, ouvir o que Marielle disse durante seus trabalhos de militância me enriquece e cresce em mim a vontade de ver se fortalecer e surgir outros nomes que deem continuidade a essa luta que precisa ser constante. Nomes como o de Maria Clara de Sena, mulher trans negra que está exilada no Canadá após sofrer ameaças em meio a sua luta por efetivação dos Direitos Humanos dentro do sistema penitenciário em Pernambuco e tantas outras mulheres que precisam ser ouvidas. E de tantas outras mulheres que precisam seguir o caminho de Marielle e ocuparem lugares de poder.

E com gosto de sague na boca e alguns sons na cabeça eu decidi escrever sobre tudo que já foi colocado acima, mas também sobre e para Marielle, com obras que sinceramente vão me lembrar dela para sempre. (Click para o segundo texto


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