Faz tempo que não escrevo
aqui. Não escrevia porque não via motivo para escrever. Parece tolice, mas por
mais que eu ensaiasse um rascunho, ouvisse algo novo, redescobrisse alguma
coisa que há tempos não cantarolava, não via o porquê de escrever. Soava hipócrita.
Escrever é uma verdade.
Escrever é transcrever a alma. É mais do que falar, porque podemos ensaiar
diversas vezes uma mentira a ser pronunciada, mas escrever uma mentira corta
como uma faca, pois te coloca de frente as palavras. As palavras escritas são
tatuagem no papel, na tela e tinta ou imagem do que pensamos ou nos disfarçamos.
O que escrevemos martela na nossa cabeça. Se é algo justo, digno, você se
orgulha. Se é injustiça, mentira e falácia, você vai irremediavelmente levar
consigo como martelada dissonante na mente. A palavra escrita é um legado.
Diante de todas as pancadas
que temos recebido na cara desde o Golpe de 2016, há momentos que
irracionalmente mergulhamos em uma letargia porque tudo parece cruel e doloroso
demais para ser visto. As redes sociais são ambientes de reverberação do que
vale a pena compartilhar e também do que machuca. É desumanidade em proporção
industrial. É fascismo se travestindo de religião, moralismo e nacionalismo, ou
seja, uma velha receita que os livros de História já nos alertaram, mas que
imbecilmente – ou conscientemente – de tempos em tempos volta com força pisando
na gente que está ao lado de quem luta contra opressão. Para além dos
fascistas, também estamos lidando com o os representantes do “mercado”. Esses
representantes estão instituídos de poder no Legislativo, Executivo e Judiciário,
estão lá para garantir que nada desviará o natural curso do classicismo que
está no cerne do Brasil. Esses representantes têm padrão, rostos que desde
sempre ocuparam esses lugares de poder. Homens brancos, ricos, heteronormativos,
que para além de apáticos ao que se passa a margem do sistema, são mandantes, cooexecutores
de todas as chagas sociais desse país. No Brasil, os 3 poderes, ditos
republicanos, têm árvore genealógica.
Quarta-feira a chave girou.
Girou dolorosamente. Em meio a inercia que me encontrava – e me envergonho
disso – assisti do sofá a PM de São Paulo, o esquadrão da Morte do PSDB, não se
fazer de rogada e quebrar, literalmente, a cara de servidores públicos com
transmissão ao vivo. Servidores públicos (assim como os integrantes da própria PM)
lutando para não ter direitos usurpados em meio a desgovernos que há tempos se
engendram e fazem morada na Prefeitura de São Paulo e no Palácio dos
Bandeirantes, foram brutalmente reprimidos. Um cala boca com cassetetes. Foi o
primeiro murro do dia, como um jab
para abrir a guarda ou um soco no fígado para enfraquecer, mas não era o golpe
final.
O soco cruzado, de direita,
veio no final da noite. Executaram a vereadora pelo PSOL e ativista Marielle Franco. Mulher
negra, lésbica, da Favela da Maré, mãe, acadêmica e alguém que não estava na
inercia. Marielle ousou mudar a ordem “natural” do sistema. Pautou sua vida política
na tríade do direito a cidade, na igualdade de gênero e no tão necessário debate
de raça, tudo isso exaltando principalmente a necessidade de discussão desses
pontos para e com os moradores das favelas. Marielle era formada em Ciências
Sociais, era mestra em Administração Pública e há mais de 10 anos vinha atuando
na militância pela efetivação dos Direitos Humanos no Rio de Janeiro. Ela
denunciava o Estado Penal, como ela mesma chamou em sua dissertação. Esse
estado que vende a ideia de insegurança social para aplicar uma política de militarização
para oprimir e controlar os mais pobres.
Marielle ocupava um importante
lugar de fala e sua EXECUÇÃO foi claramente uma tentativa de silenciar Marielle
e todos que lutam pelas mesmas pautas que ela. Além disso, fica um gostinho
amargo de que os tiros que desfiguraram Marielle, e que também assassinaram Anderson,
foram atirados na quarta-feira para acertar as eleições de outubro. Primeiro
que, Marielle e sua luta traçavam caminho para o prédio anexo do Palácio da
Guanabara, o que por si só iria cada vez mais engrossar o coro de suas denúncias
contra a ação truculenta dos mecanismos de controle do Estado.
Além disso, vem se desenhando
um panorama medonho para que se estenda a permanência da atual configuração do
Planalto por mais 2 anos, em um verdadeiro regime de exceção. Isso faz sentido, quando pensamos que o
famigerado “mercado” não emplacou nem um candidato – tentou brotar alguns nomes
que foram rechaçados com veemência, Luciano Hulk foi um desses – e claramente
vai inviabilizar, através de mecanismos jurídicos e midiáticos, a candidatura
sólida de Lula, além de não querer pagar para ver um fascista rasgado como Bolsonaro
assumir o Planalto. Diante de tudo isso, tudo aponta para que o “Grande Acordo,
com STF, com tudo” continuar do jeito que está.
Não conheci Marielle, não
sabia sobre sua história e talvez isso faça tudo ainda mais difícil de digerir.
Ela defendia ideias com quais eu partilho e tento aprender mais sobre todos os
dias. Não sou uma mulher negra, e mesmo que eu tenha crescido em uma comunidade
pobre, tive privilégios que com toda certeza não foram dados a muitos dos
jovens que cresceram comigo, além de que, a realidade de uma lésbica negra é
ainda mais difícil, pois é estar exposta a misoginia, lesbofobia e racismo a máxima
potência (inclusive dentro da própria comunidade LGBTQ). Sendo assim, ouvir o
que Marielle disse durante seus trabalhos de militância me enriquece e cresce
em mim a vontade de ver se fortalecer e surgir outros nomes que deem
continuidade a essa luta que precisa ser constante. Nomes como o de Maria Clara
de Sena, mulher trans negra que está exilada no Canadá após sofrer ameaças em
meio a sua luta por efetivação dos Direitos Humanos dentro do sistema penitenciário
em Pernambuco e tantas outras mulheres que precisam ser ouvidas. E de tantas
outras mulheres que precisam seguir o caminho de Marielle e ocuparem lugares de
poder.
E com gosto de sague na boca e
alguns sons na cabeça eu decidi escrever sobre tudo que já foi colocado acima,
mas também sobre e para Marielle, com obras que sinceramente vão me lembrar
dela para sempre. (Click para o segundo texto)
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