sexta-feira, 16 de março de 2018

Marielle Franco l Lágrimas, luta e música II




Vai teu caminho, que eu vou te seguindo no pensamento e aqui me deixo rente quando voltares, pela lua cheia para os braços sem fim do teu amigo. Vai tua vida, pássaro contente


Em 25 de setembro de 1956 estreava no Teatro Municipal do Rio de Janeiro a peça musical Orfeu da Conceição. Escrita por Vinicius de Moraes (músicas de Tom Jobim, cenário de Oscar Niemayer), foi apenas a segunda vez que uma peça protagonizada por atores negros subia ao palco do Municipal, que era um espaço claramente de uma elite. No palco, Ruth de Souza e Haroldo Costa (e outros atores do Teatro Experimental do Negro de Abdias Nascimento) encenavam em três atos uma adaptação – ambientada nas favelas cariocas – do mito grego de Orfeu e Eurídice. Monólogo de Orfeu, Lamento do Morro e Se todos fossem iguais a você fizeram parte da trilha sonora que três anos depois seria lançada em vinil. Orfeu da Conceição, dentro da realidade da época e todo seu contexto, dá protagonismo ao morro. É de uma beleza e simbolismo atemporal e nunca foi tão necessário revisitar essa obra. Em seu último ato ecoa:

Juntaram-se a Mulher, a Morte a Lua
Para matar Orfeu, com tanta sorte
Que mataram Orfeu, a alma da rua
Orfeu, o generoso, Orfeu, o forte.
Porém as três não sabem de uma coisa:
Para matar Orfeu não basta a Morte.
Tudo morre que nasce e que viveu
Só não morre no mundo a voz de Orfeu.

Marielle Franco lutou para desestigmatizar as populações das favelas, que poucas vezes são retratadas protagonizando algo que não seja ligado ao crime organizado. Lutou por uma política inclusiva, por uma cidade do Rio de Janeiro que oferecesse condições para que as populações dessas comunidades estivessem inclusas em um plano que estendesse a eles o direito a cidade. Era um dos pilares de seu mandato no legislativo municipal. A de insegurança social é plantada e cultivada pelo Estado para que esse faça seu controle social, oprimindo as populações mais vulneráveis. Marielle denunciava um sistema que trata a população negra, favelada, desassistida e tratada como gado, cercado, cerceado, que pasta sob vigilância e é abatido quando convém. 


Ela me conta que era militante e trabalhou por nós
Com algumas mulheres, foi feliz
Com outras foi mulher
Que tem muita luta no coração
Que tem dado muito amor
Espalhando a consciência
E o amor
Mas ela ao mesmo tempo diz que tudo vai mudar
Porque ela vai ser o que quis, inventando um lugar
Onde a gente e a natureza feliz vivam sempre em comunhão
E a tigresa possa mais do que o leão
           
            Estava sussurrando Tigresa há dias. E ontem Ana Cañas teve licença poética para colocar na letra um pouco de Marielle. Durante muito tempo se discutiu sobre para quem Caetano Veloso havia escrito Tigresa. Uns diziam que era para Sônia Braga, outros que era para Zezé Motta. Certa vez, Caetano falou que a letra tinha muito de ambas, mas não era apenas sobre elas, mas sobre muitas mulheres que ele conviveu ou viu naquela época. Essa mulher linda e forte parece ter ganho mais um rosto.  

Pouco tem se falado sobre o fato de que Marielle Franco era lésbica, algo que Ana Cañas fez questão de dizer poeticamente na sua interpretação da letra de Tigresa. Ser o L da sigla tem em si um peso gigantesco dentro de uma sociedade que ao mesmo tempo que é homofóbica é também misógina. A misoginia se encontra inclusive dentro da própria comunidade LGBTQ, que é um espectro da sociedade machista ao qual estão as margens. O racismo e a misoginia estão tão dentro da comunidade LGBTQ quanto da casa do nosso parente mais conservador. E embora saibamos muito bem que a EXECUÇÃO de Marielle não tenha sido exclusivamente por questões identitárias, mas uma associação de tudo isso com a representatividade de seu corpo político que para os mandantes era necessário silenciar, ainda ecoa também a necessidade de se fortalecer os debates em torno de questões de gênero, sexualidade e raça. 

O Estado não sabia de uma coisa:
Para matar Marielle não bastava a morte. Tudo morre, que nasce e que viveu. Só não vão matar, tirar do mundo a voz de Marielle.


Marielle,
PRESENTE. 

1 comentários:

Unknown disse...

Sim, a palavra escrita é mais que parte da escultura da informação, é uma assertiva, uma intervenção necessária à sedimentação da verdade. Algumas vezes o ato de escrever é a descarga que nos desintoxica. Na maioria das vezes é porque não suportaríamos esconder uma parte necessária a construção coletiva.
Sim, Marielle foi eliminada porque assumiu a missão de fazer a coisa certa em benefício da coletividade, sem compactuar com o poder, buscou o caminho pertinente e legal e estava conquistando os resultados. Isso nunca foi suportado pelos representantes do poder. Através da história temos o registro de diversos exemplos. Alguns, como o ex-presidente Lula, não é tão simples como foi com Marielle, demanda uma operação mais complexa para deixa-lo fora da influência do poder, assim como foi com Brizola e tantos outros. Por isso é impossível não falar, não expor as resultantes que os fatos redesenham com clareza à nossa frente. Como escreveu Sakamoto (https://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br), sobre a execução de Marielle: “Estado foi cúmplice, não importa quem puxou o gatilho.” Portanto, continue escrevendo para manter a sua integridade física e espiritual.

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