Vai teu caminho, que eu vou te seguindo
no pensamento e aqui me deixo rente quando voltares, pela lua cheia para os
braços sem fim do teu amigo. Vai tua vida, pássaro contente
Em 25 de setembro de 1956
estreava no Teatro Municipal do Rio de Janeiro a peça musical Orfeu da Conceição. Escrita por Vinicius
de Moraes (músicas de Tom Jobim, cenário de Oscar Niemayer), foi apenas a segunda
vez que uma peça protagonizada por atores negros subia ao palco do Municipal,
que era um espaço claramente de uma elite. No palco, Ruth de Souza e Haroldo
Costa (e outros atores do Teatro Experimental do Negro de Abdias Nascimento)
encenavam em três atos uma adaptação – ambientada nas favelas cariocas – do mito
grego de Orfeu e Eurídice. Monólogo de
Orfeu, Lamento do Morro e Se todos fossem iguais a você fizeram parte
da trilha sonora que três anos depois seria lançada em vinil. Orfeu da Conceição, dentro da realidade da
época e todo seu contexto, dá protagonismo ao morro. É de uma beleza e
simbolismo atemporal e nunca foi tão necessário revisitar essa obra. Em seu último ato ecoa:
Juntaram-se a Mulher, a Morte a Lua
Para matar Orfeu, com tanta sorte
Que mataram Orfeu, a alma da rua
Orfeu, o generoso, Orfeu, o forte.
Porém as três não sabem de uma coisa:
Para matar Orfeu não basta a Morte.
Tudo morre que nasce e que viveu
Só não morre no mundo a voz de Orfeu.
Marielle Franco lutou para desestigmatizar
as populações das favelas, que poucas vezes são retratadas protagonizando algo
que não seja ligado ao crime organizado. Lutou por uma política inclusiva, por
uma cidade do Rio de Janeiro que oferecesse condições para que as populações
dessas comunidades estivessem inclusas em um plano que estendesse a eles o
direito a cidade. Era um dos pilares de seu mandato no legislativo municipal. A
de insegurança social é plantada e cultivada pelo Estado para que esse faça seu
controle social, oprimindo as populações mais vulneráveis. Marielle denunciava
um sistema que trata a população negra, favelada, desassistida e tratada como gado, cercado, cerceado, que pasta sob vigilância e é abatido quando convém.
Ela me conta que era
militante e trabalhou por nós
Com algumas mulheres,
foi feliz
Com outras foi mulher
Que tem muita luta no
coração
Que tem dado muito amor
Espalhando a consciência
E o amor
Mas
ela ao mesmo tempo diz que tudo vai mudar
Porque
ela vai ser o que quis, inventando um lugar
Onde
a gente e a natureza feliz vivam sempre em comunhão
E
a tigresa possa mais do que o leão
Estava
sussurrando Tigresa há dias. E ontem
Ana Cañas teve licença poética para colocar na letra um pouco de Marielle. Durante muito tempo se discutiu sobre para quem Caetano Veloso havia escrito Tigresa. Uns diziam que era para Sônia Braga, outros que era para Zezé Motta. Certa vez, Caetano falou que a letra tinha muito de ambas, mas não era apenas sobre elas, mas sobre muitas mulheres que ele conviveu ou viu naquela época. Essa mulher linda e forte parece ter ganho mais um rosto.
Pouco tem se falado
sobre o fato de que Marielle Franco era lésbica, algo que Ana Cañas fez questão de dizer poeticamente na sua interpretação da letra de Tigresa. Ser o L da sigla tem em si um
peso gigantesco dentro de uma sociedade que ao mesmo tempo que é homofóbica é também
misógina. A misoginia se encontra inclusive dentro da própria comunidade LGBTQ,
que é um espectro da sociedade machista ao qual estão as margens. O racismo e a
misoginia estão tão dentro da comunidade LGBTQ quanto da casa do nosso parente
mais conservador. E embora saibamos muito bem que a EXECUÇÃO de Marielle não
tenha sido exclusivamente por questões identitárias, mas uma associação de tudo
isso com a representatividade de seu corpo político que para os mandantes era necessário
silenciar, ainda ecoa também a necessidade de se fortalecer os debates em torno
de questões de gênero, sexualidade e raça.
O Estado não sabia de
uma coisa:
Para matar Marielle não bastava a morte. Tudo morre, que nasce e que viveu. Só não vão matar, tirar do mundo a voz
de Marielle.
Marielle,
PRESENTE.
1 comentários:
Sim, a palavra escrita é mais que parte da escultura da informação, é uma assertiva, uma intervenção necessária à sedimentação da verdade. Algumas vezes o ato de escrever é a descarga que nos desintoxica. Na maioria das vezes é porque não suportaríamos esconder uma parte necessária a construção coletiva.
Sim, Marielle foi eliminada porque assumiu a missão de fazer a coisa certa em benefício da coletividade, sem compactuar com o poder, buscou o caminho pertinente e legal e estava conquistando os resultados. Isso nunca foi suportado pelos representantes do poder. Através da história temos o registro de diversos exemplos. Alguns, como o ex-presidente Lula, não é tão simples como foi com Marielle, demanda uma operação mais complexa para deixa-lo fora da influência do poder, assim como foi com Brizola e tantos outros. Por isso é impossível não falar, não expor as resultantes que os fatos redesenham com clareza à nossa frente. Como escreveu Sakamoto (https://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br), sobre a execução de Marielle: “Estado foi cúmplice, não importa quem puxou o gatilho.” Portanto, continue escrevendo para manter a sua integridade física e espiritual.
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