terça-feira, 2 de agosto de 2016

Gal Costa| Enigma


Como eu disse no texto anterior, existem pessoas que são enigmas ambulantes. Por mais que você tente decifrar o olhar dessas pessoas parece sempre ter algo faltando, algo que lhe ata as mãos e lhe deixa sem prumo. As dores moldam e fazem as pessoas criarem mecanismos de defesa que as cercam como casulos. A maior verdade que já ouvi nas sábias palavras da Dona Kaya, é que tem pessoas que parecem cristais prestes a estilhaçar. A vida fez delas tão frágeis que a qualquer perturbação elas parecem prontas para desmoronar na nossa frente. A dor não enrijeci pessoas, a dor envolve feridas em mistério.

Em 1973 o capitalismo sofria mais um 7x1 -que sistemicamente se repete- com a crise do petróleo. A economia mundial foi estremecida e o arrocho foi a resposta dos donos do tabuleiro desse jogo político-econômico que se desenhou no mundo moderno. Jorge Mautner e Nelson Jacobina transformam a aura do desalento em poesia para se cantar. Lágrimas Negras é perturbadora. A letra e melodia dão tons de dualidade. Uma melancolia que seduz, uma dor prazerosa.

Em 74, Gal Costa laçou seu Cantar, um disco gravado em estúdio e que é conhecido por ter as gravações de Barato Total e Até Quem Sabe. Mas é nele também que se encontra a melhor interpretação para a canção de Mautner e Jacobina. Gal canta como quem se despede. Tem dor e amor naquela voz.


Na frente do cortejo
O meu beijo
Muito forte como o aço
Meu abraço
São poços de petróleo
A luz negra dos seus olhos


Eu sempre gostei do contato. Do apertar as mãos, do olhar nos olhos, mas principalmente do abraço. Essa permissão de encontro de corpos, mas antes de tudo de entrega ao outro é algo que para mim é quase ritualístico. Abraço para mim é troca de energia. E foi aí que eu me dei conta do cristal prestes a estilhaçar, quando recebi o abraço que mais me perturbou na vida. Não foi perturbador no sentido negativo, mas no aspecto de perceber a necessidade de cuidado do outro. Foi quando esse alguém encostou a cabeça por alguns segundos no meu peito e eu senti como se uma criança pedisse afeto. Não é a carência viciosa dos tempos modernos, mas um grito de “preciso de cuidado. Sou frágil” de forma silenciosa. Nunca vou esquecer aquele abraço.


 Por entre flores e estrelas
Você usa uma delas como brinco
Pendurada na orelha
É o astronauta da saudade
Com boca toda vermelha


Em meio a todas essas dores e mistérios camuflados em olhos de neblina, ainda pode existir um alguém radiante e que exala beleza. Talvez seja a única das faces que as pessoas possam enxergar nesse ser que mais parece um pássaro machucado. É belo, mas se recolhe entre suas asas para que não se veja suas feridas. Acho sempre interessante, como os seres humanos são superficiais e engolem as superficialidades dos outros, superficialidade que nada mais é uma máscara para esconder as lágrimas.

Para mim, não sei para vocês, existe um encantamento pela descoberta do outro.  Enxergar para além do que a maioria enxerga. Eu gosto dos detalhes, das minucias. A beleza real não é aquela que a maquiagem ressalta, que uma roupa ressalta, mas sim a personalidade que coroa aquela alma


Belezas são coisas acesas por dentro
Tristezas são belezas apagadas pelo sofrimento



Enxergar os machucados que a vida sentenciou a alguém e notar que aí que habita o que é de mais lindo em cada ser humano não é algo que todas as pessoas estão prontas para lidar. É como desnudar alguém olhar para suas cicatrizes. É nesse momento que entendemos de onde vem tanta névoa que envolvem essas pessoas. É o escudo delas para não serem machucadas novamente. No fundo, ainda é uma pessoa em busca de suas verdades, tentando obter respostas. Tudo muito sutil, muito leve e lentamente recuando sempre quando perceber qualquer risco de se machucar. Uma pessoa como essa, não é sujeito comum para olhos burocráticos. É uma imagem com seu paspatur camaleônico que em silêncio está constantemente repetindo como uma esfinge “decifra-me ou devoro-te”.  

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