As redes sociais têm
evidenciado as vaidades pessoais de alguns sujeitos em meio às lutas por
demandas das minorias. Não estou aqui escrevendo para tomar o lugar de fala de
ninguém, sei muito bem que dentro dessas discussões sem rumo que tomam espaço
na internet minha posição de mulher branca e cisgênero levantam logo a fala:
“Mas você tem lugar de privilégio na sociedade”. E quem disse que eu estou
falando que não? Sim, antes continuar com esse texto tenho que deixar claro
qual é meu lugar de fala. Como já diria o filósofo e historiador francês Michel
de Certeau, quando escreveu sobre estudos da religião, “Eu sou um jesuíta
falando de dentro da Companhia de Jesus”.
Sim, eu não faço ideia do
que é sofrer preconceito por conta da minha cor da pele, mas não tenho o menor
orgulho dentro de mim em afirmar isso. Eu não sei o que é ser seguida dentro do
supermercado pelo segurança, eu nunca entrei em uma loja onde não fui
prontamente atendida. Minha culpa? Não, culpa de uma construção social nefasta
e arraigada no que há de pior na história humana. Mas é importante que eu
exponha os privilégios que essa sociedade doente jogou em meu colo, porque a
todo momento que tento lutar contra isso recebo por parte de alguns a frase,
“mas você é uma mulher branca e cis...mulher branca e cis...mulher branca e
cis...”.
Ok, eu já entendi. O que
talvez as pessoas não entendam é o quanto toda essa falácia vem por terra
quando esse meu privilégio de branca cis entra em conflito com minha orientação
sexual. Nesse momento a sociedade me joga para o final da fila. Mas estou aqui
deixando logo essas lacunas fechadas para seguir a linha de raciocínio. E
preciso deixar claro também que eu sei que há uma necessidade de especificação
das causas, até porque existem múltiplas experiencias. Por exemplo,
eu nunca vou ter a mesma experiência que as mulheres negras, essa é uma
luta protagonizada por elas.
O ponto a ser problematizado
aqui é simples: por que as redes sociais têm se tornado palco para tanto show
travestido de ativismo? Não estou aqui para julgar a relevância do ativismo de
ninguém, mas em meio ao bombardeio de “textões” dissonantes acredito que exista
uma necessidade da volta para o básico: a teoria.
Esses dias a briga (porque
para mim discussão é outra coisa) vem girando em torno do que é legitimo ou não
dentro das demandas feministas. Sabe aquelas frases “disso as feministas não
lembram” “sobre isso as feministas não falam” ? Pois bem, é sobre essa
construção de ideia, fomentada pelas pessoas que querem desguarnecer a fala do
movimento feminista, que precisamos tratar.
Em 1998, a professora
Doutora Maria Clementina Pereira Cunha teve um artigo publicado pela revista
Tempo, um periódico da UFF. Esse artigo intitulado De Historiadoras, Brasileiras e
Escandinavas: Loucuras,
folias e relações de gêneros no Brasil (século XIX e início do XX), faz uma
análise coerente sobre os estudos da História das Mulheres e as discussões dos
estudos de gênero.
A autora começa
contextualizando o Movimento Feminista em meado dos anos 70 do século XX,
momento em que a militância teve um grande fortalecimento e número. Pois bem,
Clementina - que é uma historiadora exemplo para mim em todos os sentidos -
escreveu como o ar de entusiasmos aflorava no movimento feminista setentista, e
trazia com suas demandas o surgimento de segmentos de imprensa voltados para a
divulgação das ideias dos grupos. Além disso, foi um momento de muito
simbolismo por trás das famosas queimas de sutiãs e afirmação dessas mulheres
como sujeitos coletivos. Enfim, não é bem sobre essa parte do texto de
Clementina que irei me debruçar, mas sim na continuação, quando ela desnuda a
face das mulheres que não estavam às vistas do Movimento Feminista naquele
momento. Ela ressalta uma matéria de um dos jornais da época, o Nós mulheres, que mostra a vida de uma mulher em sua
terceira passagem por hospitais psiquiátricos da cidade de São Paulo.
Uma mulher internada e tida
como louca por “não ser boa esposa”, que se culpava por não “cumprir seus
papéis de esposa” ou ter de fazer isso de maneira forçada. Ela é o retrato das
mulheres fora da curva, aquelas que até nós, as feministas, ainda temos
dificuldade de abarcar as suas demandas. Sabe a frase “se seu feminismo não
enxerga inclui...”? Pois é, nosso feminismo anda discutindo mais a exclusão que
a inclusão de demandas. Estamos vivendo um momento de rachadura em uma
estrutura que deveria ser inclusiva.
Estamos nos fechando em
nossas caixinhas de demandas pessoais e esquecendo o sentido de coletividade.
Sim, como a própria Clementina ressalta em seu belíssimo texto, as mulheres têm
diferentes experiências, e por isso o tratamento teórico do tema deve ser bem
plural. No entanto, isso não pode ser confundido com separação, apartamento de
pautas. Não aprendemos nada com o sentido de classe? E só para deixar claro,
eu sou da História Social.. aqui tem Marx, Thompson. Me desculpe, mas não
estamos aqui para mentir.
Os mais “entendidos” do tema
podem me apedrejar, inclusive por trazer para essa discussão o sentido de
classe. Sim, mais uma vez, o sentido de classe em Thompson. Parece bem repetitivo
da minha parte, mas só vou parar de falar nele quando ficar entendido que fazer
parte de uma classe nada mais é que se enxergar no outro. Claro que as
múltiplas experiências tornam isso mais complexo, mas a experiência de ser
mulher dentro de um contexto machista e misógino já poderia ser o suficiente
para deixar de lado a marmotagem dos “closes” e deixar as vozes das manas
ecoarem.
É simples, para algumas
pessoas o ativismo se tornou uma forma de afirmação social. A visibilidade que
a rede social dá e a forma com que alguns grupos usam pessoas como estandartes,
vem fazendo com que se forme um campo de batalha. Nesse chamariz de
oportunistas, temos homens que bancam de desconstruídos para mascarar o
machismo caviar que vem em embalagem de HeForShe e, claro, também temos
mulheres que permanecem com a cabeça nas lutas dos anos 70. Enfim, tem lugar
para todo mundo ganhar like,
gerar polêmica e fazer textão.
Ao mesmo tempo, eu vejo
pessoas com discursos coerentes, mas que se assustam ao ter que se expor aos
leões do ativismo caça níquel. Não sei onde isso tudo vai parar, mas imagino os
caminhos que estão tomando. Nesses momentos penso na minha avó, Dona Alice
Eugenia. Mulher criada no interior do estado de Pernambuco e que teve sua vida
marcada por muitas viagens para a capital, apenas para ser internada nos
hospitais psiquiátricos. Minha avó nasceu em uma família humilde, mas foi além
do seu tempo ao iniciar a alfabetização de crianças na região da Serra da
Passira. É professora aposentada, e nada leu sobre feminismo na vida. Mas foi
com ela que recebi algumas lições.
Minha avó, assim como a
mulher relatada no texto de Clementina, foi internada diversas vezes por seu
próprio marido. A culpa também recaía sobre ela, a histérica. Minha avó tinha
que lidar em silêncio com a perda da filha mais velha, morta em um atropelamento.
Ela não tinha o direito de sentir, ela apenas teria que passar por cima do fato
e seguir sendo uma esposa “presente”. No auge de sua depressão, ela teve de
lidar com a gravidez e posteriormente com os tratamentos psiquiátricos.
Me pergunto: o que faz da
minha avó e outras mulheres escondidas em meio a esses discursos, menos parte e
cara dessa luta? Será que a gente está realmente preocupada em lutar pelas
demandas como um grupo ou só estamos querendo seguidores no Facebook? Será que
estamos mesmo colaborando para o fortalecimento e efetivação das lutas por
igualdade de gênero, ou queremos amaciar nosso ego? Eu também me faço essa
pergunta todos os dias que penso e me questiono sobre o que me faz ser
feminista. Esse texto é um exercício pessoal de autocritica.
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