sábado, 16 de julho de 2016

Gal Costa| Quando Gal foi uma faca rasgando nossas mentes


Em 1970, durante a gravação do programa Ensaio, Tom Zé precedeu a interpretação de Gal para a canção Sua Estupidez com uma das falas mais arrebatadoras que eu particularmente já ouvi. Na época, Gal Costa e Tom namoravam, um relacionamento que anos depois o mesmo diria que era um atropelo. Mas esmagados ficamos nós em meio as palavras ditas por ele. É de uma beleza cortante, algo que qualquer um gostaria de dizer e ouvir, tamanha é a profundidade. A rapidez e ferocidade de Gal resumidas em algumas linhas, em pensamentos descontínuos, livre e vorazes como a própria Gal Costa. Declaração digna de pessoas que tomam o ar do ambiente que habitam, passam. Coisa para quem tem um rugido interno, mesmo que não perceba.


“Sabe uma faca me rasgando, um mundo se acabando, num sei. Gal Costa cantora, Gal Costa a mulher. A mulher terrível, a mulher linda. A noiva, a morta, a viúva, a maravilha: É muito difícil falar essas coisas, eu não sei, a Gal Costa sempre me trata com choques elétricos.  E eu chego pra ver ela e me arrebento por ela e me desarrumo por ela, não sei, é sempre surpreendente, eu nunca sei o que vai acontecer, e cada vez é como a vida tivesse se partindo, se começando, se acabando...Gal Costa é muito maravilhosa”


Naquela gravação de 70, Gal Costa estava sendo acompanhada pela banda Som Imaginário, que posteriormente se tornaria um ícone da música instrumental brasileira. Tavito, Zé Rodrix e companhia, haviam se reunido pela primeira vez para acompanhar Milton Nascimento, e depois disso se reuniram com outros grandes nomes da música nacional. Sua Estupidez foi originalmente composta e gravada por Roberto Carlos em 1969. Em uma entrevista, RC declarou que a música era um grito de alerta para aqueles que amam, mas vivem infelizes por se apegarem a detalhes insignificantes. Sim, ela soa como um alerta diário para nossa burrice de continuar dando murros em ponta de faca.

Mas foi na voz de Gal, daquela Gal imortal dos anos 70, que Sua Estupidez ganhou sua maior interpretação. Gal era de fato como uma faca rasgando o peito de qualquer um que a ouvisse. Era como um tiro em meio a testa quente da rigidez do cotidiano. Ela era um recado estampado na parede dizendo “seja o que quiser ser, desde que seja você”.


Meu bem, meu bem
Use a inteligência uma vez só
Quantos idiotas vivem só
Sem ter amor
E você vai ficar também sozinha
E eu sei por que
Sua estupidez não lhe deixa ver
Que eu te amo


Assim como Gal, a canção de Roberto Carlos é cortante. Corta porque aponta para nossas vulnerabilidades, nossas paixões. O nosso ímpeto muitas vezes é maior que nosso medo de nos machucarmos. No final dessa estrada que leva até nossos impulsos sempre parece haver um precipício esperando nossos corpos desesperados pelo amor que parece que nunca vai vir. O que não nos permite enxergar o amor?

A nossa cegueira é proposital. Nós corremos léguas do que pode nos preencher. Claro, ficar vazio muitas vezes é a nossa fuga das dores que a vida nos impõe. Preferimos pagar de loucos, de despercebidos. Fazemos a linha piscianos, porque é assustador, para a realidade de quem só fez sofrer, descobrir que pode ser amado. A gente se amarra nos erros e fincamos os pés nas incertezas, trabalhar com o incerto é cômodo, é como viver de sonhos. Tudo só fica na imaginação, então nada nos machuca. Reflita: você já parou para pensar porque algumas pessoas lhe dão a sensação de segurança, de estar em casa? Nossa mente não erra, ela nos dá os sinais de fogo, a gente é que prefere ficar ilhado.  

Mas que deprimente é a vida sem a coragem de encarar o amor de frente, não? Pense, até quando podemos viver fazendo de conta? A vida não é um jogo de poker, não vence quem melhor sabe blefar. A vida é um circuito cross-country, e se você não estiver preparada para as irregularidades, altos e baixos, asfaltos e arreias, então seja honesto consigo mesmo e não reclame. Nós preferimos requentar nossos relacionamentos falidos ou insistir em relações tóxicas, daquelas que só importam as noites experimentadas, do que ter reais experiências de amor sem cobranças, amor de entrega total. 


Meu bem, meu bem
Sua incompreensão já é demais
Nunca vi alguém tão incapaz
De compreender
Que o meu amor é bem maior que tudo
Que existe
Mas sua estupidez não lhe deixa ver
Que eu te amo


As paixões vão sempre ser uma constante na vida daqueles que estão nesse mundo para se jogar. Não podemos nos quebrar para manter ninguém inteiro. A vida é muito curta para problematizarmos o amor. Lembro que há algum tempo vi uma fotografia nas redes sociais e tive meu corpo automaticamente tomado por descargas elétricas. Foi uma das sensações mais estranhas que já tive, até porque eu ainda não fazia ideia de quem se tratava. É sobre essas descontinuidades e lógicas próprias que o amor tem que a canção de Roberto fala. É sobre essa ferocidade que Tom Zé destaca e arrebatadoramente delineia Gal em palavras. O amor é um tratamento com choques elétricos que nós agradecemos por receber. Se não houver intensidade, vontade e provocação, virou amizade, conveniência. O amor eros é arrebatador, de tirar o fôlego e renova a alma. Ele corta, fere e cura. Se você não reconhece o amor, sua vida ainda é matéria vaga e sem sentido.


No fim de tudo, os valores que aprendemos é que somos estúpidos se amarmos, se formos bobos apaixonados. Me pergunto se os tolos não são aqueles que desconhecem o sorriso frouxo de uma alma apaixonada. Se a tolice humana habita nos calafrios, nos borboletear do estômago e nas bochechas rubras ao ouvir ou ler algo que te aquece o coração, então não tenha vergonha de ser tolo. Somos todos tolos, ou pelo menos assim gostaríamos de ser. Ao final do dia, nessa jornada chamada vida, o que vale são as memórias que nós criamos. E se for pra amar, que todo esforço seja válido. Que todo amor seja válido.

2 comentários:

Lilian disse...

Que texto incrível. Foi certeiro aqui! Obrigada! Amo essa canção. Essa declaração e agora os teus escritos tb! ♡

Alice disse...

Muito obrigada!!! É engraçado voltar aqui depois de 3 anos e saber que esse texto continua sendo uma verdade pra mim e talvez para muitas outras pessoas

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