Mais um 8 de março chegou e a
luta permanece. Permanece em meio as descrenças, desgraças e a opressão. Os
repetidos desejos de “Feliz dia da mulher” ainda soam como uma faca,
sufocamento e o som dos tiros que todos os dias persistem em assassinar mulheres.
Mulheres da classe operaria, mulheres que cuidam de suas casas e filhos
enumeras vezes sozinhas. As mulheres que precisam fazer de sua existência um
manifesto de resiliência contra um sistema patriarcal encrustado no amago de
uma sociedade, que por alguma causa torpe continua a negar as vozes daquelas
que estão aí na luta. Que essa data não seja marcada pelas flores, mas pela
luta. Que não se diminua a resistência e a consciência política de todas as
mulheres a uma caixa de chocolate e a uma promoção de livraria. Que nossa luta
venha a resistir a todas as tentativas de silenciamento, por nós e por todas
que vieram antes. A nossa luta não vai sessar, porque ela foi plantada em cada
momento da História em que as mulheres saíram do lugar que a sociedade tentava
as condicionar e foram fazer a diferença.
Aqui vai algumas canções, nas vozes
que não se calaram e usaram arte como instrumento de transformação e
militância.
Quando em 8 de setembro de
1990 a jovem argentina Maria Soledad Morales foi brutamente assassinada na Província
de Catamarca, no Norte da Argentina, o silêncio se tornou uma metáfora para a
luta. Entorpecida, estuprada e morta por dois homens que a justiça tardou a
condenar, já que suas famílias ocupavam lugar de privilegio dentro da sociedade
de práticas oligárquicas de Catamarca. A comoção e o sentimento de impunidade
deram início a manifestações que fariam ruir, não apenas o sistema da pequena
província, mas também o modo de lutar dos grupos sociais oprimidos na
Argentina.
As marchas del silencio já eram praticadas como manifestações desde os
anos 70, mas foi o eco da injustiça e da opressão que soavam no Norte que as
fizeram cada vez mais populares. Membros da sociedade civil de San Fernando del
Valle de Catamarca, cidade em que o crime ocorreu, grupos religiosos católicos,
familiares e amigos tomaram as ruas e passaram a chamar a atenção de todo país
para o ocorrido. O silêncio cortante das marchas ganhou apoio e cobertura
midiática.
Em 1993, o filme El caso Maria Soledad não apenas narrou,
mas serviu como um símbolo da eternização da luta por justiça contra o
feminicidio. Em sua trilha sonora, a voz de Mercedes Sosa imortaliza Maria
Soledad na letra escrita por Osvaldo Montes.
Puede
el silencio cambiar tu voz,
puede
la historia cambiar.
Y
puede el silencio gritar verdad,
puede
el camino cambiar.
Em
dias de Trump e os desencantos da spoiled
classe média norte-americana, o famigerado american
way of life foi posto em cheque. O sonho americano e toda a falácia da liberdade
capitalista sempre se transformam em tombos homéricos em épocas de crise. Os
americanos sempre carregaram o estandarte do bloco “unidos da meritocracia”, e
claro que dentro de toda essa pregação que advêm da tradição dos pioneiros da
colonização.
Após
os anos iniciais da política de Big Stick
e as manobras comerciais dos EUA no Entreguerras, a euforia econômica
fortaleceu a ideia da liberdade e prosperidade tão exaltadas nas figuras do Tio
Sam e da Estátua da Liberdade. A crise econômica veio, a suposta liberdade e a
não regulação econômica por parte do Estado entram em recesso. Os anos de Lei
Seca e de reformas paternalistas de Franklin Delano Roosevelt foram o contra
cesso de tudo que os estadunidenses enxergavam - e ainda enxergam- como o real papel
do Estado.
Foi em
meio a Segunda Guerra que Janis estreou nesse mundo. E nas tensões e reposições
socioeconômicas dos anos 40 e a guinada dos anos 50, o Texas e a vida seguindo
a cartilha da boa família americana se tornou muito pequena para ela. Joplin precisava
fazer amor com seu público através de sua voz e de sua presença de palco. E foi
com o sarcasmo que ela desdenhou da sociedade de consumo norte-americana. A
lenda Janis Joplin se utilizou dos símbolos de desejo e do discurso da meritocracia
para ironizar o famoso sonho americano. Mercedes
Benz foi a última música gravada por Janis, em 1 de outubro de 1970,
exatamente 3 dias antes da sua morte.
“I'd like to do a song of a great social and poetical
import
It goes like this”
Oh Lord, won't you buy me a Mercedes-Benz?
My friends all drive Porsches, I must make amends
Worked hard all my lifetime, no help from my friends
So Lord, won't you buy me a Mercedes-Benz?
Instituto
de Música Curtis, na Filadélfia se negou a tê-la como aluna. O diploma de piano
clássico obtido na renomada Julliard não era o suficiente para derrubar as
portas que a segregação – legalizada- ainda empunham nos EUA dos anos 50. Ter nascido
negra na Carolina do Norte não foi o suficiente para cala-la. Dedicou sua vida
aos estudos musicais e ao ativismo pela obtenção dos Direitos Civis pela
comunidade afro-americana.
Eunice
Kathleen Waymon se fez Nina Simone, e assim entrou para o hall de figuras que fizeram
do seu potencial artístico uma forma de serem ouvidas e de representar uma
causa. O ativismo de Nina não era de forma alguma subjetivo. Ela era acida e
muita direta em suas críticas. Em plena Guerra do Vietnã, ela se apresentou
para as tropas em solo americano com um poema que contrariava os anseios bélicos
estadunidenses. Foi dessa forma que, uma de suas composições se tornou um dos
hinos da luta pelos Direito Civis.
Mississippi Goddamm foi
escrita no icônico ano de 1964, e fala sobre o assassinato de 4 crianças em
1963, em uma igreja da cidade de Birmigham no estado do Mississippi. Nina cita
em sua letra a violência pregada contra a população negra nos estados sulistas
do Alabama, Tennessee e Mississippi e logo a música se popularizaria entre a resistência
afro-americana.
Can't you see it
Can't you feel it
It's all in the air
I can't stand the pressure much longer
Somebody
say a prayer
O Movimento pelos Direitos
Civis nos EUA foi o lugar de encontro de diversos artistas que viam nesse
ativismo a esperança por dias melhores, dignidade e o exercício da igualdade de
direitos. O final da década de 1950 e o início dos anos 60 foram marcados por
diversas manifestações respostado as ações de ódio de grupos supremacistas brancos,
principalmente nas regiões Sul e Central dos EUA. Diversas canções foram
entoadas como gritos de resistência.
Joan Baez foi uma das que estiveram
na linha de frente do efervescente ativismo dos anos 60. Participante ativa das
manifestações pelos Direitos Civis e abertamente contraria a Guerra do Vietnã,
Baez iniciou sua carreira com a forte presença do Folk, tendo agregado já nos anos 60 os elementos elétricos que denotam
de uma influência das bandas inglesas que estouraram na época. Joan Baez foi
companheira musical de Bob Dylan, e juntos interpretaram e escreveram diversas músicas
de protesto durante as décadas de 60 e 70.
We
Shall Overcome não foi escrita por Baez, mas foi na suave e contundente
interpretação de Baez durante a Marcha em Washington D.C que a canção se tornou
ainda mais popular.
Oh, deep in my heart
I know that I do believe
We shall overcome, some
day
Víctor
Jara, Atahualpa Yupanqui, Mercedes Sosa, León Gieco, Milton Nascimento, Joan
Báez são conhecidos por darem vozes as canções de protesto, e todos eles
tiveram suas carreiras marcadas por interpretações das músicas da chilena
Violeta Parra. Não apenas uma divulgadora da música popular chilena, mas sendo
considerada a fundadora da música popular daquele país, Violeta foi uma artista
com múltiplas facetas.
Como escultora
e ceramista, teve sua exposição individual no Museu do Louvre, em 1964. Mas foi
como a compositora de um cancioneiro que se tornaria o símbolo de seu país e
influência para outros artistas da América Latina que Parra foi imortalizada.
Em sua
canção de protesto Los hambrientos piden
pan, que após sua morte ficaria conhecida como La Carta, Violeta Parra usa
a correspondência em que recebe notícias de seu irmão Roberto, que estava
sofrendo perseguição política no Chile – nessa época ela vivia em Paris- para
retratar as questões sociais recorrentes na América do Sul tomada por regimes
opressores.
Yo que
me encuentro tan lejos
Esperando
una noticia
Me
viene a decir la carta
Que en
mi patria no hay justicia
Los
hambrientos piden pan
Plomo
les da la milicia, si
O sobrenome
Confederado não lhe cai bem. Ao lado de Gal Costa e Nara Leão, Rita Lee Jones
foi uma das mulheres que participaram do histórico disco Tropicália ou Panis et circenses. Rita nasceu em meio ao conforto
estilo classe média muito bem abastada, repousada na Vila Madalena. Filha de um
dentista norte-americano -que acrescentou o Lee em homenagem ao general
Confederado- e neta de imigrantes italianos, Rita foi criada para seguir a
profissão do pai, odontólogo, mas ela estava destinada a ser a ovelha negra da família.
Com os
Mutantes se tornou referência no Rock Progressivo que ainda engatinhava no
Brasil. Já nos anos 70, foi com a banda Tutti Frutti que Rita Lee marcaria de
vez o seu nome como uma das artistas mais influentes da música brasileira. Rita
já escreveu diversas canções onde questiona os padrões de gênero.
Porque
nem toda feiticeira é corcunda
Nem
toda brasileira é bunda
Meu
peito não é de silicone
Sou
mais macho que muito homem
Quem houve
Chavela Vargas talvez não de conta do forte papel de quebra de paradigmas que
sua figura proporcionou dentro da música tradicional mexicana. Nascida na Costa
Rica e radicada no México durante cerca de 80 anos, Vargas ocupou um lugar que
antes parecia exclusivo para os homens. A tradição da música rancheira mexicana
é predominante ocupada por figuras masculinas, e foi Chavela, que entre os anos
30 e 50 ocupou seu espaço interpretando conhecidas canções do cancioneiro
mexicano.
Fez
parte do círculo de amizade de Diego Rivera e Frida Kahlo, com quem
suspostamente teria vivido também um relacionamento amoroso. Viveu uma vida de excessos,
e viu o alcoolismo praticamente acabar com sua carreira. Nos anos 90, Pedro Almodóvar descobre
a interpretação de Chavela e a incorpora a trilha de alguns de seus filmes. Foi
a volta de Chavela Vargas ao seu merecido lugar de ícone da música tradicional
mexicana.
A paixão
com a qual Chavela viveu sua arte e sua vida parecem se encontrar na
interpretação dela para a música Paloma
Negra, de Tomás Mendez Sosa.
Hay
momentos en que quisiera mejor rajarme
y
arrancarme ya los clavos de mi penar,
pero
mis ojos se mueren sin mirar tus ojos
y mi
cariño con la aurora te vuelve a buscar.
E o Brasil redescobriu a
potência de Elza. Discriminada durante anos de sua carreira, Elza Soares
amargou duros anos de perseguição no inicio de sua relação com
Garrincha. Acusada pelos conservadores de destruir o casamento do então
jogador, Elza teve uma vida artística e pessoal cheia de altos e baixos. Mas o
tempo, ah o tempo, esse foi responsável por colocar tudo no lugar e trazer o
reconhecimento justo por uma carreira de resistência.
Filha de um operário e de uma
lavadeira, Elza Soares foi criada na periferia do Rio de Janeiro. Com uma vida
dura, ela foi obrigada pelos pais a casar-se quando ainda tinha 12 anos de
idade, tendo seu primeiro filho ainda na adolescência. Sua origem humilde era
motivo para o preconceito velado que sofria ao se apresentar nas rádios, mas a resistência
dela sempre teve uma força condizente com a potência de sua voz.
Foi escolhida pela BBC como a
cantora brasileira do milênio. Cantou o hino Brasileiro na abertura do Pan
Americano de 2007 e participou também da abertura dos Jogos Olímpicos de 2016. Elza
é a Mulher do Fim do Mundo.
Quebrei a cara e me
livrei do resto dessa vida
Na avenida dura até o
fim
Mulher do fim do mundo
Eu sou e vou até o fim
cantar
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