No álbum dos Doces Bárbaros, em 1976 uma canção soava
profética. Teve até quem dessa a ela ares apocalípticos, mas nada poderia
parecer mais lindo e mais brasileiro. Um índio
também foi faixa de um dos melhores discos de Caetano, Bicho, em 1977. 40 anos depois, a profecia de Caetano tomou forma,
som e ritmo, ou como a própria canção já dizia “Em átomos, palavras, alma, cor”.
O índio de Caetano desceu de
fato de uma estrela, bem em cima do Pará. Foi iluminado pelo tecnobrega, as aparelhagens e fez de
todas as referências locais a ponte para encontrar algo muito maior: a
sonoridade própria. O paraense Jaime Melo deu vida a essa persona única e com
uma musicalidade transcendente. Jaloo nasceu parido de um misto de aparelhagem,
MPB e Bjork, mas se engana quem acha que artisticamente é apenas isso.
Virá
Impávido que nem
Muhammad Ali
Virá que eu vi
Apaixonadamente como
Peri
Virá que eu vi
Tranqüilo e infálivel
como Bruce Lee
Virá que eu vi
O axé do afoxé Filhos
de Gandhi
Virá
Jaloo é um choque
visual e uma caricia sonora. Ele não é o obvio, mas também choca por não ser
algo que nós não poderíamos esperar da música brasileira. Ele choca por ser síntese
de tudo que somos, como historiadora enxergo ele como uma das mais belas
personificações da mestiçagem brasileira. É tudo que nós já conhecemos, mas ao
mesmo tempo é novo. Ele é um soco no estômago, por ser tudo que parte da nossa
sociedade quer jogar para debaixo do tapete. Ele é um retrato da construção e
da desconstrução da nossa sociedade.
Insight foi como ele chegou até mim. Luiza Possi regravou em uma
versão linda, mas burocrática, porém foi daí que vi o original. Eu fiquei alguns
segundos tentando processar as imagens do vídeo, porque sempre fui
esteticamente atraída por figuras que a maioria da sociedade consideraria “exóticas”,
mas não acho que essa palavra se encaixe, nem em Jaloo, nem para as taitianas
de Gauguin. É um conceito superado e arraigado com o pensamento do XIX. Jaloo é
arte.
Um índio preservado em
pleno corpo físico
Em todo sólido, todo
gás e todo líquido
Em átomos, palavras,
alma, cor
Em gesto, em cheiro, em
sombra, em luz, em som magnífico
Mas o meu grande
impacto foi com o vídeo e a letra da canção Last Dance. São quase 5 minutos de close
up, em um rosto de uma expressividade assustadora e de beleza sem conceito.
Cabeça mergulhada em algo gelatinoso, música profunda e com gosto de final de
linha.
A atual geração da música
brasileira tem uma estética própria, a geração Tombamento, liderada por
Liniker, Karol Conká, Dalasam e companhia afronta os padrões instituídos pela
heteronormatividade e todos os valores construídos pela burguesia
intelectualmente falida – ou seria natimorta- desse país. Conceito de gênero sendo
tombado e tudo que poderia empoderar uma geração que carece de referências.
Jaloo não anda a largo dessas questões, muito pelo contrário, ele soma nesse
diálogo. Sendo que seu impacto plástico é, na minha opinião, de uma provoação
aos sentidos muito mais intensa.
E aquilo que nesse
momento se revelará aos povos
Surpreenderá a todos
não por ser exótico
Mas pelo fato de poder
ter sempre estado oculto
Quando terá sido o
óbvio
Eu poderia ter partido
para entender Jaloo apenas a partir das próprias canções dele, mas seria impossível
defini-lo melhor do que Caetano o fez 40 anos antes de Jaime Melo explodir
nossa mente tomando a forma de Jaloo. Ele é a melhor tradução da Antropofagia
modernista, ele é a cara e o som que o Brasil tem, mas ainda se “assusta”
quando vê. Mas obrigado, Jaloo, por sua delicadeza caótica. Obrigado por não
sermos capaz de conceituar você, obrigado por estar acima da nossa mania de
nomear e conceituar tudo. Obrigado por não ser o fast music que nos engolimos em doses cavalares, precisamos de você
em doses homeopáticas, como um ritual de entender a nós mesmos.
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