sexta-feira, 10 de junho de 2016

Jaloo| "Em átomos, palavras, alma, cor"


No álbum dos Doces Bárbaros, em 1976 uma canção soava profética. Teve até quem dessa a ela ares apocalípticos, mas nada poderia parecer mais lindo e mais brasileiro. Um índio também foi faixa de um dos melhores discos de Caetano, Bicho, em 1977. 40 anos depois, a profecia de Caetano tomou forma, som e ritmo, ou como a própria canção já dizia “Em átomos, palavras, alma, cor”.

O índio de Caetano desceu de fato de uma estrela, bem em cima do Pará. Foi iluminado pelo tecnobrega, as aparelhagens e fez de todas as referências locais a ponte para encontrar algo muito maior: a sonoridade própria. O paraense Jaime Melo deu vida a essa persona única e com uma musicalidade transcendente. Jaloo nasceu parido de um misto de aparelhagem, MPB e Bjork, mas se engana quem acha que artisticamente é apenas isso.

Virá
Impávido que nem Muhammad Ali
Virá que eu vi
Apaixonadamente como Peri
Virá que eu vi
Tranqüilo e infálivel como Bruce Lee
Virá que eu vi
O axé do afoxé Filhos de Gandhi
Virá

Jaloo é um choque visual e uma caricia sonora. Ele não é o obvio, mas também choca por não ser algo que nós não poderíamos esperar da música brasileira. Ele choca por ser síntese de tudo que somos, como historiadora enxergo ele como uma das mais belas personificações da mestiçagem brasileira. É tudo que nós já conhecemos, mas ao mesmo tempo é novo. Ele é um soco no estômago, por ser tudo que parte da nossa sociedade quer jogar para debaixo do tapete. Ele é um retrato da construção e da desconstrução da nossa sociedade.

Insight foi como ele chegou até mim. Luiza Possi regravou em uma versão linda, mas burocrática, porém foi daí que vi o original. Eu fiquei alguns segundos tentando processar as imagens do vídeo, porque sempre fui esteticamente atraída por figuras que a maioria da sociedade consideraria “exóticas”, mas não acho que essa palavra se encaixe, nem em Jaloo, nem para as taitianas de Gauguin. É um conceito superado e arraigado com o pensamento do XIX. Jaloo é arte.


Um índio preservado em pleno corpo físico
Em todo sólido, todo gás e todo líquido
Em átomos, palavras, alma, cor
Em gesto, em cheiro, em sombra, em luz, em som magnífico


Mas o meu grande impacto foi com o vídeo e a letra da canção Last Dance. São quase 5 minutos de close up, em um rosto de uma expressividade assustadora e de beleza sem conceito. Cabeça mergulhada em algo gelatinoso, música profunda e com gosto de final de linha.

A atual geração da música brasileira tem uma estética própria, a geração Tombamento, liderada por Liniker, Karol Conká, Dalasam e companhia afronta os padrões instituídos pela heteronormatividade e todos os valores construídos pela burguesia intelectualmente falida – ou seria natimorta- desse país. Conceito de gênero sendo tombado e tudo que poderia empoderar uma geração que carece de referências. Jaloo não anda a largo dessas questões, muito pelo contrário, ele soma nesse diálogo. Sendo que seu impacto plástico é, na minha opinião, de uma provoação aos sentidos muito mais intensa.


E aquilo que nesse momento se revelará aos povos
Surpreenderá a todos não por ser exótico
Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto
Quando terá sido o óbvio


Eu poderia ter partido para entender Jaloo apenas a partir das próprias canções dele, mas seria impossível defini-lo melhor do que Caetano o fez 40 anos antes de Jaime Melo explodir nossa mente tomando a forma de Jaloo. Ele é a melhor tradução da Antropofagia modernista, ele é a cara e o som que o Brasil tem, mas ainda se “assusta” quando vê. Mas obrigado, Jaloo, por sua delicadeza caótica. Obrigado por não sermos capaz de conceituar você, obrigado por estar acima da nossa mania de nomear e conceituar tudo. Obrigado por não ser o fast music que nos engolimos em doses cavalares, precisamos de você em doses homeopáticas, como um ritual de entender a nós mesmos. 

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